quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Escolha - Conto um.




Se a vida te desse uma segunda chance você aceitaria? Independente das consequências? 


Dedico esse conto para Adauto Generoso.





Sabe aquela sensação quando você acorda de manhã e sabe que alguma coisa está errada. Antes mesmo de abrir os olhos você sente aquela pontada aguda no peito dando inicio a uma dor que te afetara o resto do dia.

Foi o que aconteceu comigo.

Eu nunca pensei que esse dia chegaria ninguém nunca pensou. No meu modo de ver a morte é um sentimento que testa sua capacidade de reação, ela te tira da realidade por um segundo ou mais que isso. A morte te transforma, às vezes para melhor ou pior cabe a nós meros mortais ainda vivos escolher.

Naquela manhã se soubéssemos que aquilo iria acontecer com ele teríamos impedido de alguma forma, mas ai penso. 

E se não acontecesse? O que mudaria? Estaríamos contrariando as leis do universo impedindo que algo de ruim acontecesse com alguém tão querido e amado. E se pudéssemos salvar um tio, irmão, pai, mãe, primo, avós, amigos em troca de outra vida. 

Faríamos?

Seriamos capazes de fazer tal coisa?

Às vezes mesmo não querendo devemos aceitar aquilo que está na nossa frente e seguir em frente. Mais se eu tivesse uma oportunidade de trazê-lo de volta eu faria.

Mas como?



Estou parada olhando para frente sem enxergar realmente o que está na minha frente. Não há som ou ruídos menores, estou parada no nada. Pisco duas vezes e tomo consciência de onde estou realmente, num lugar pequeno feito de metal no formato quadrado. Não sei como fui parar aqui, não me lembro de absolutamente nada. 

Estava dentro de um elevador parado.

Os números dos andares estavam apagados então não sei qual andar estou ou se fiquei parada no térreo. Um dos botões pisca e o elevador se move ao comando do número solicitado, fico parada no mesmo lugar perdida. Por um momento além de não saber onde estava eu havia esquecido meu nome. 

O elevador para e as portas se abrem automaticamente e nesse momento que eu o vejo. Parado do lado de fora está uma pessoa que não vejo há muito tempo, não sei exatamente quanto tempo se foram mais para mim sempre vai ser como se tivesse acontecido recentemente. Ele ainda usava a blusa verde polo gastado de tanto que usar, bermuda jeans por debaixo da barriga grande que tinha dando acesso às canelas finas e russas. A pele morena ainda tinha seu charme junto com o sorriso de criança grande.

Estava exatamente como me lembrava. 

Não sei se rio ou se choro porque sei que isso é uma ilusão. Não é real.

-Claro que não é real, estou morto lembra? – diz tio Bob com aquele jeito brincalhão.

-Tento não lembrar. 

Ele sorri e tenta disfarçar o nervosismo. 

Em um dia em que eu achava que seria comum aconteceu um desastre na minha família. Foi um choque para todos descobrir que a pessoa mais animada e com grandes planos para o futuro foi embora sem que percebêssemos. Foi como tentar pegar um pelo fino sendo levado pelo vento. Tio Bob sempre foi àquela pessoa que viajava muito, ia para todos os lugares e tinha varias histórias para contar, todo mundo conhecia ele. Ele morreu na estrada, acidente de carro, morreu na hora segundo os médicos. Eu ainda me lembro do seu enterro e depois dele quando tentamos encontrar todas as pessoas que o conhecia e da uma noticia horrível, acho que ainda a maioria não sabe.

Eu sou o tipo de garota que não gosta muito de demonstrar realmente o que sinto. As pessoas se aproveitam de seus sentimentos, elas te magoam, trai e ferrem para tentar te fazer mal enquanto elas estão bem. Existem pessoas que só existem para te criticar e fazer você se sentir como se não fosse nada. No dia em que ele morreu eu tentei guardar esses sentimentos só para mim, eu chorei algumas vezes mais a maioria sozinha até hoje eu acordo na madrugada de vez em quando e choro sozinha. 

Ainda olhando para mim ele espera minha reação. 

-Porque estou te vendo? – Pergunto. 

-Venha comigo. 

Tio Bob segue na frente no longo corredor e o sigo um pouco longe. Ele ainda andava assoviando enquanto faz barulho com os pés tentando manter o mesmo ritmo da musica.

No final do corredor ele faz a curva e quando o acompanho tudo fica branco e estamos em um hospital. 

-O que está acontecendo?

-Você vai ver.

Passamos por vários quartos e médicos até ele parar na entrada da ultima porta no fim do corredor. Não havia ninguém, olho para trás para conferir realmente e ter certeza se aquilo era um sonho ou pesadelo, daqueles em que de repente você está na cama e um medico te abre com você ainda consciente. 

Tio Bob ainda está parado do lado de fora e na distancia que estou não consigo ver para quem ele está olhando. Aproximo e vejo alguém deitado na cama, ainda não consigo ver o rosto. 

-Porque estamos aqui?

-Aproxima e verá. – responde ele.

Olho ainda meio desconfiada e dou uma ultima olhada no corredor. O quarto de hospital é igual a qualquer outro quarto de hospital, fede a álcool e depressão. Há flores murchas no quarto e vários copos de café vazios no canto perto da lixeira, os aparelhos ligados chamam atenção para a pessoa deitada na cama. 

Eu ainda não havia percebido, eu nem sequer havia olhado naquela direção. Se tivesse não teria coragem o suficiente para entrar.

Deitada na cama ainda se mantendo viva por aparelhos estava nada mais do que eu mesma. 

***

Eu olhava e ainda não acreditava no que estou vendo. Passo as mãos pelo corpo tentando me sentir de alguma forma, eu quero chorar só que não consigo. Tento não olhar para mim mesma e começo a coçar a cabeço como sempre faço quando estou nervosa. 

-Você sofreu um acidente de moto. Caiu e bateu à cabeça muito forte, você está em coma alguns meses os médicos acham que não vai mais acordar.

-Mas eu vou acordar, porque isso, você não passa de um pesadelo. Eu vou acordar e esquecer que isso aconteceu. Tudo isso não passa de uma fantasia na minha cabeça. 

Não percebo que estava gritando até aquele momento. O monitor da cama começa a fazer barulho e não é nada bom porque os médicos aparecem segundos depois e começam a falar um com o outro em palavras estranhas. A única coisa que entendo é parada cardíaca. 

-Você não pode ficar aqui. – diz Tio Bob do meu lado me puxando para fora.

Enquanto ele me puxava eu repetia mentalmente varias vezes Acorda, Acorda, Acorda. Eu rezo e grito.

Eu estava morrendo. O monitor não havia voltado a fazer Pip, eu me vi morrendo. Me solto do agarro das mãos do tio Bob e saio correndo, antes de desaparecer no corredor vejo minha família inteira correndo na direção do quarto. 

***

Escondida na escada de incêndio tento lembrar como eu havia sofrido o acidente. Minha cabeça estava completamente em branco, quanto mais esforço fazia menos eu lembrava. A porta da escada de incêndio abre e alguém desce devagar, olho para ver quem é e vejo minha irmã descendo as escadas.

Ela tem os olhos vermelhos e fundos de tanto chorar. Ela senta do meu lado sem saber que estou ali e começa a chorar novamente. 

A primeira coisa que penso é em conforta-la, mas como? Tenho certeza que meu braço vai passar por ela ou algo assim. Tento não pensar em qual seria o motivo agora que ela está chorando, só fico do lado dela observando-a chorar.

-Se você me deixar, eu juro que vou ficar com muita raiva e deserdo você como irmã. 

Isso significa que eu ainda estava viva?

Levanto rapidamente e corro escada à cima, passo pela porta e corro até a multidão perto do meu quarto. O normal de um hospital é duas pessoas por visita, mas isso nunca, jamais se enquadra na minha família. As enfermeiras tentavam dar conta até que uma chama o segurança do hospital fazendo com que todo mundo fosse embora. 

No quarto o medico conversava com minha mãe que ouvia atentamente todas as palavras sem tirar os olhos de mim. 

-Sei que deve ser difícil tomar essa decisão, mas tememos que ela só piore a partir de agora. A solução para o sofrimento é desligar os aparelhos. 

Não, nem pensar eu ainda estou aqui e vou lutar para ficar. Quem que esse medico pensa que é para falar assim? 

-Sua mãe não vai aceitar, ela acredita que você ainda pode vencer essa luta. 

Do meu lado Tio Bob aparece me dando susto. 

-Será que eu realmente posso?

Ele não diz nada, apenas sai do quarto e eu o sigo.


***

Tio Bob me leva para o elevador novamente e aperta um botão aleatoriamente. Não demora muito até o elevador abrir novamente.

Estávamos na casa da musica. Eu lembro muito bem daquele dia, eu tinha 13 anos. 

O melhor dia da minha vida ficará sempre marcado comigo. Ele havia aparecido na minha casa e disse que queria companhia para ir buscar alguns documentos. No meio do caminho havia a casa da musica, o meu sonho era pisar e saber qual era a sensação de ser uma pessoa interessada por musica. 

Dentro da loja fazendo demonstração estavam os funcionários tocando, foi naquele momento em que decidi que iria aprender a tocar violão. Depois que ele se foi acho que perdi todo o encanto e parei de tocar. 

-Você tem talento. Não sei por que parou, gostava de te ouvir tocar.

Não falo nada apenas olho para frente, observo os caras tocando novamente. Era como se voltasse no tempo, onde nada na vida era errado. Tudo era perfeito, pelo menos para mim. 

Eu me lembro de mais uma coisa que aconteceu naquele dia. Adivinhando meus pensamentos o elevador começa a tocar a musica Crazy do Aerosmith, a musica que tocou no carro de volta para casa onde cantamos em plenos pulmões completamente errada. 

Eu me lembro desse dia como se fosse ontem. 

***

Sentados no elevador ouvindo Legião Urbana enquanto assistíamos os médicos passando de um lado para o outro penso no por que. Porque temos que morrer para reencarnar novamente e passar pelas mesmas coisas várias e várias vezes, qual é o objetivo de tudo isso? Qual é o sentido da vida?

Porque sofremos tanto com a partida de uma pessoa, nos já viemos ao mundo sabendo que vamos sofrer. Somos masoquistas por querer viver e sofrer várias e várias vezes?

-Como foi para você? Descobrir que morreu. 

-Eu levei um tempo para me acostumar, eu tinha planos e muita coisa ainda para viver. Eu tinha uma mente jovem e quando me vi naquela estrada pensei que Deus estava me punindo por alguma coisa, mas depois pensei que não adianta puni-lo se sua hora já havia chegado. 

-Então minha hora já chegou? – Pergunto. 

-Eu acho que essa decisão cabe a você, você escolhe se quer ficar ou se quer ir embora. Eu não tive essa opção e queria muito. Você só tem que descobrir um motivo.

Um motivo para ficar. Eu podia pensar em muitos pós e contra, todos eles estavam igualados e naquele momento não tinha como escolher.

-Se lembra de quando você era pequena e sempre quis viajar comigo, todas as suas primas foram menos você porque era muito pequena e não gostava de se separar da sua mãe.

Aceno com a cabeça.

-Pense nisso como uma viagem que faremos juntos caso você queira ir embora. Você ficou meses em coma e seu retorno será devagar, não quero influenciar na sua decisão só quero que escolha com sabedoria. – responde ele dando um sorriso sincero.

-Vá ao seu quarto, o horário de visita começou.

Tio Bob levanta e sai do elevador me deixando sozinha.

***

De volta ao meu quarto minha mãe está sentada ao lado do meu corpo segurando minha mão, ela a segurava como se aquilo me mante-se viva. Olho para minha mão e não sinto nada, nem mesmo o calor de seu corpo perto de mim.

-Os médicos querem que eu assine para que eles possam desligar os aparelhos. Eu não consigo fazer isso, o dever de uma mãe nunca é de ver o filho morrer antes. Você sempre foi uma garota forte, eu sei que consegue sair dessa, mas se você estiver aqui por causa de mim e estiver sofrendo. – minha mãe começa a chorar. Eu nunca na minha vida havia visto mamãe chorar, até agora.

-Eu te amo e não quero que vá. Se estiver sofrendo demais você tem minha permissão para ir embora, mas não vá sem ao menos ter tentado lutar.

Vê ela daquele jeito me deixou completamente de coração partido, eu nunca desejei ver ela daquele jeito. Quero que toda sua dor pare, eu quero que tudo isso pare. Eu peço, eu rezo, por favor, que seja um sonho. 

Alguém bate na porta e vejo meu melhor amigo entrando sem jeito. Eu sempre adorei ficar perto dele, ele me fazia sentir bem não importa o lugar. Quando olho em seus olhos vejo todo seu espirito animador havia ido embora e isso parte mais um pouco meu coração.

Minha mãe o vê entrando e dá qualquer desculpa para sair e chorar sozinha no banheiro. Ele espera mamãe ir embora e fecha a porta devagar e fecha as cortinas. Abrindo a mochila devagar ele tira minha cadela York Shire que por milagre fica quieta sem fazer um mínimo de barulho. 

Esse garoto só pode estar louco, é proibido entrada de animais no hospital. Ele pode ser preso.

-Sei que é proibido animais no hospital mais já que você está aqui então não vi problemas.

Tento não rir com a situação e observo ele colocar a cadela do meu lado. Ela se encaixa e lambe meu rosto chorando baixinho como se soubesse que estar ali é proibido. 

-Vim em nome de toda rapaziada. Sentimos sua falta, eu sinto sua falta. Você mudou minha vida, não quero que vá. Ainda temos mais loucuras para fazer. 

Aquela cena estava me deixando fraca e emotiva demais. Saio do quarto e caminho pelo corredor do hospital. A sala de espera havia ainda algumas pessoas da minha família, nunca pensei que fosse assim tão importante. Sempre me senti aquela deslocada, jogada no canto da sala em festa. 

Nunca imaginei que todos ficariam daquela forma, ainda mais comigo. 

Por dez minutos fico ali parada olhando para eles e então penso que a história está se repetindo novamente. As mesmas dores que eles sentiram na morte do Tio Bob só que duas ou três vezes pior. Tio Bob morreu rápido e sem dor diferente de mim.

Minhas pálpebras estão querendo se fechar no mesmo instante que médicos começam a correr no corredor. 

Eu não quero ficar para ver o que vai acontecer a partir de agora. Sigo o corredor vou ao elevador e aperto o botão para fechar. 

Por meses eu fiquei em coma e só agora acordei, o motivo do despertar é para tomar uma decisão. Eu vou ou fico. Eu não sei quais delas tomar a única coisa que sei é que essa decisão está sendo tomada nesse momento. 

Viver ou morrer depende de mim.

Enquanto o elevador se movimento penso em todas as frases que deixei de falar. “Eu te amo” “Eu não consigo sem você” “Desculpa”. Devemos dizê-las antes que seja tarde demais. 

O elevador para e quando abre à porta Tio Bob está me esperando. Ele está diferente, eu o sinto diferente. Isso significa que minha hora chegou. 

Viver ou morrer depende de mim.

Eu sei que se eu sair do elevador, minha vida aqui termina e começarei uma nova jornada. Olho para o tio Bob e sorrio.

-Eu te amo.

-Eu também te amo. 

Minha decisão foi tomada e as portas do elevador se fecham quando decido que eu ainda não havia terminado essa jornada da minha vida. Eu aceito todas as consequências a partir de agora, mas eu não vou partir sem ter ao menos tentado lutar. 

Então eu decido ficar. Eu decido dar mais uma chance de viver, de amar, de sofrer, rir e chorar. Começo uma nova jornada abrindo os olhos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário